Monday, January 30, 2006

Ao Amor

Parece-me difícil olhar por cima do ombro de Deus para lhe espreitar o jogo. Mas que Ele jogue aos dados ou use métodos “telepáticos”... Isso não acredito nem por um momento.

Einstein
Primeiro éramos átomos singelos. Naïfes. Depois, aos poucos, a dança coordenada e incompreensível da vida foi-nos refinando, cada um no seu espaço, enigmaticamente. Deixámos de ser apenas átomos e passámos a ser um pouco mais que apenas átomos. Muito mais do que átomos. Um pouco mais que a misteriosa vontade que une sobre cada um de nós cada um desses corpúsculos. Éramos mais do que átomos mas não éramos ainda um só todo (apenas). Éramos dois todos, incompletos, e cada um a seu canto.
Fomos ganhando vontades. Fomos criando quereres que nos fizeram homem e mulher, finos. Homem e mulher, encantadores. Eu, um cabeça nas nuvens, desnecessariamente espiritual. Tu, a mais terra-a-terra das terra-a-terra. Terra-a-terra de forma útil e prática. Demasiado terra-a-terra só para ti, da mesma forma que a minha cabeça era demasiado no ar só para mim.
Depois, quando pensávamos que mais nenhuma combinação fosse possível, que nada mais havia a unir, quando nos sonhávamos completos, como se tivesse cessado toda e qualquer fusão, quando nos fazíamos crer que nada mais podia haver nesta coisa chamada mistério, nesta latrina chamada existência, quando acreditávamos no vazio para além das nossas essências cheias de vontades, de vontades separadas, uniu-nos o amor. O nosso amor. O nosso amor foi a forma consciente da união de algo mais que (apenas) átomos, algo acima dos átomos, uma mesma dança mas dessa vez não somente coordenada como compreensível. Foi a perfeição. Os meus esforços para me manter unido e integro passaram a olhar as tuas partículas como partes minhas. Passaste a ser o meu espelho: Olhando-te olhava-me; Vendo-te via-me; Tocando-te sentia-me. Passámos a viver impregnados de nós, havendo sempre um espaço entre os espaços cheios para, perplexamente, nos misturarmos ainda um pouco mais e mais e mais e mais e mais...
Depois... Depois veio o inevitável decaimento. Como nos átomos simples, também o nosso todo mais que o todo de algo mais que (simples) átomos, a nossa vontade maior que as vontades, a nossa verdade nossa, era inconstante. A maleita começou em parte incerta, de forma ténue, sem darmos por isso. Decaiu aquilo que nos tornou no todo feliz e ficou apenas o que está para além dos elementos simples mas aquém do todo: As vontades, separadas. Um dia irão também decair essas vontades separadas e depois delas decairão os átomos e, outra vez separados dos todos já separados, iremos incorporar novas existências, primeiro singelas, depois algo mais que singelas, depois, algo mais que algo mais que singelas, átomo por átomo, incompreensivelmente. Porque, os átomos duram mais que as vontades, as vontades são o combustível imperceptível dessas partículas, o amor... o nosso amor, esse é a vontade incrível que une as mais estranhas vontades: A minha e a tua.

Monday, January 23, 2006

Cousas da abstracção

“Olha, traz-me uma garrafa de branco e um garrafão de 5 litros de tinto, tá bem?... Diz-me só uma coisa, o tinto é igual ao da outra vez? É que esse não estava bom”. O rapaz tremia com o telemóvel no ouvido e, pelo aspecto dos olhos vidrados, deu perfeitamente para entender que não era vinho o que pretendia. O vinho, em Portugal, não tem entrega ao domicílio e, se tem, é em quantidade que justifique a deslocação. É em almudes ou pipas que se entrega o vinho porta a porta, não é? Droga! droga era o que o indivíduo suplicava ao telefone: Uma dose de cocaína e 5 dozes de outra mistela qualquer.
A capacidade de abstracção dos nossos toxicodependentes anda pelas ruas da amargura. Qualquer agente da GNR ou da Guarda Municipal, mal preparado, conseguiria chegar lá sem a menor dificuldade. O Pinto da Costa já se lixou com esquemas similares! Para entregar algumas prostitutas no quarto dos árbitros referia-se, vejam lá, a Fruta! “A Fruta”, quando queria denominar as prostitutas de uma forma genérica, e “o Café com Leite” quando queria especificar um tom de pele mais escuro de alguma morena em particular. Tudo esquemazinhos que qualquer mentecapto conseguiria (como em vão se conseguiu) descortinar. Está-se mesmo a ver o Pinto da Costa: “Ó pá que tal a fruta?”, ao qual o trio de arbitragem por vezes respondia em uníssono: “Hum... esta última era de fora de época”.
O problema está todo na nossa mísera capacidade de abstracção. Não é nem é um problema de algumas classes sociais – futeboleiros e toxicodependentes. É um problema de todos os portugueses. Os portugueses não são bons de números, não são bons de cabeça. Não gostam de matemáticas e a maioria das matemáticas existe apenas para elevarmos a nossa capacidade de raciocínio e, consequentemente, de abstracção.
Onde é que a nossa polícia judiciária apanhava o Pinto da Costa se ele usasse de uma abstracção numérica ou matemática? Por exemplo, para Prostitutas de uma forma genérica usaria as “Pi vezes o Raio ao quadrado”, enquanto ao círculo restrito das prostitutas de luxo daria o nome de “Dois Pi vezes o raio” e, se quisesse denominar uma mulatinha em particular, por que não usar da fórmula da energia?: “Ó pá, vou-te mandar uma Massa vezes o quadrado da velocidade da luz, pode ser?” O toxicodependente que usasse de esquemas mais terra-a-terra, do género: “Quero uma soma do quadrado dos catetos”, para se referir a uma dose de cocaína ou, para detalhar 5 dozes de boa qualidade: “Traz-me X menos um igual a seis de soma do quadro dos catetos mas que não seja como a da outra vez pois essa não deu uma hipotenusa muito boa!”. Se se julgasse a parte do “essa não deu uma hipotenusa muito boa” demasiado óbvia, poder-se-ia então usar – a título excepcional, repito: excepcional! - o dito que o meu pai utiliza para se referir ao mau vinho: Essa hipotenusa não estava grande pomada.
Vá, ó futeboleiros e toxicodependentes, vejam lá se se aplicam nessas abstracções para quebrarem com a monotonia e darem um pouco de alento à vida dos nossos agentes da polícia judiciária.

Saturday, January 14, 2006

Le Creusot


France, Le Creusot
Frio que corta, imagens que ficam.

Friday, January 06, 2006

O culto do suspense

Tenho uma coisa para te contar que já ta devia ter contado há mais tempo... Já tentei contar-ta mas depois perco sempre a coragem. Mas... também não a quero contar aqui neste corredor cheio de gente.
Transpiração! transpiração é o que me acomete nestes momentos. Tem de haver sempre alguma coisa por contar! pior do que isso, alguma coisa que deveria ter sido contada de início. Percorro quase sempre os mesmos caminhos mentais tentando antever qualquer possível novidade. Imagino tudo ou quase tudo. Não entendo como há sempre coisas que não são contadas logo de início se de início a perda que a verdade nos pode provocar é infinitamente menor que em outro momento qualquer, não é assim?
O “tenho uma coisa para te contar que já ta devia ter contado há mais tempo” dela fez-me olhá-la duas vezes. Não! reflecti, irá dizer-me que um dia já foi um homem? Da segunda vez que a mirei apercebi-me quão obtusa era a possibilidade tais eram vincados os seus traços femininos. Pelo sim pelo não não deixei repousar o meu olhar, e muito menos o meu espírito, procurando qualquer sinal que evidenciasse tal mutação. Nada! Meti bigode e tirei bigode. Adelgacei-lhe as ancas. Farto, tirei-lhe um pouco ao busto. Dei-lhe uma pitada de rugosidade às mãos. Pus a menina a marchar para lhe analisar os movimentos. Nã... Homem ela nunca foi! ponho a minha mão no fogo, mas só a mão! - Nunca arrisco as outras variantes, como, e a título de exemplo, o “ponho o meu pescoço no cepo”, é que com uma mão queimada ainda se vive, agora sem pescoço!...
Fui ainda mais longe – na procura da verdade deveremos ir sempre até ao fim, sem resignação. Vai dizer-me que me tirou um rim para pagar a prestação da casa, antecipei. Não! tal também não podia ser, não sentira a mínima dor nos últimos tempos e a minha derradeira ecografia atestara dois rins sem pedra.
O que será, então? O que seria então?!
Continuávamos em pé naquele corredor cheio de movimento, eu, ela e as minhas interjeições. Gaguejo sempre quando não consigo dizer mais nada. Gaguejar é a minha arma de arremesso para retardar as coisas, todas as coisas. Naquele momento gaguejei na tentativa de lhe sacar o que já havia de ter sido dito sem ser sacado. Naquele momento gaguejei tentando que ela me matasse logo ali com tal tão pavorosa notícia.
A investida seguinte nos caminhos do meu pensamento levou-me a uma doença grave da qual ela seria portadora. Tenho medo de doenças de qualquer tipo, que fará das graves!
Por fim...
Eu já fui casada, disse ela tentado encarar-me.
Ufa!... – eu não disse “ufa” mas disse-o o meu suspiro de conforto. Ter sido casada não era, nem de longe nem de perto, o mesmo que ter sido homem ou ter tido a sífilis. Porra! matam-nos do coração estas gajas que cultivam o suspense...